Lourenço Mutarelli, um homem de detalhes

Lourenço (1)O homem de 50 anos, movimentos lentos e tranquilos, fala mansa e calma e tom de voz quase inalterável, não parece o criador de histórias perturbadoras, realidades kafkianas e anti-heróis tortos, que nos acostumamos a ver em seus livros e quadrinhos.

Sob aplausos, Lourenço Mutarelli sobe ao palco no Itaú Cultural, em São Paulo, para abrir o evento ‘Quartas ao Cubo’, dedicado à discussão sobre HQs durante o mês de abril. O artista foi chamado para falar sobre um tema que domina: diálogo de quadrinhos e outras formas de expressão artística.

“Me perdoem pelas roupas, mas eu achei que iria usar tinta. Bom… Eu não me visto melhor na vida real”, desabafa. Ele ajeita o casaco jeans, que sobrepõe uma camisa com manchas de tinta; uma calça bege cheia de bolsos e uma bota preta completam o vestuário. Para ele, estar no palco, falar sobre arte, é estar fora do mundo real. Ali, ele habita um mundo que pode dizer e desenhar o que quiser sem se preocupar em ser entendido.

Trabalhando com arte desde os 24 anos, Mutarelli diz que até tentou ser outra coisa, mas não levava jeito para nada. “Fui bedel, motorista, entrei como gerente de uma farmácia e saí como o rapaz dos pacotes. Eu não me dou bem com o mundo real. A arte, a arte, arte…” – ele procura as palavras, enquanto desenha, perdido no que não sabe ainda como dizer – “É uma doença, né? Se você tomar um remedinho, como eles mandam, você para e vai trabalhar… Não no Itaú Cultural, mas no Itaú banco, mesmo”, brinca, mantendo o tom de afirmação séria. “O artista é um cara que não se adequa a nada”, resume, quando os risos já cessaram.

No fim da reportagem tem uma entrevista exclusiva com o artista 😉

Desde a infância, o artista sente uma dificuldade em se concentrar no que chama de mundo real: “Eu era um péssimo aluno, mas não por ficar batendo papo ou fazendo brincadeiras. Eu não conseguia prestar atenção no que a professora falava. Eu me distraía com os detalhes dela… A boca, as mãos. Eu adoro mãos, gente”.

Mutarelli é daquelas pessoas convictas de suas próprias verdades, impossível de serem demovidas de suas certezas. “Quando eu lia um livro que falava que o Egito era não-sei-onde, eu não acreditava naquilo. ‘Ah, porque Napoleão…’ Napoleão é o caramba! Quando o cara que escreveu o livro nasceu, Napoleão já tinha morrido há muito tempo!”, revolta-se de maneira comedida, mantendo sempre o tom calmo e os movimentos tranquilos. “A ciência é uma das coisas mais burras já inventadas. É uma outra inquisição que vai te dizer que as coisas são de determinado jeito”, explica, voltado para a plateia, de costas para o enorme painel que recebe seu desenho.

Lourenço (5)A Arte

Mutarelli começou nas histórias em quadrinhos na década de 80, mas, ao longo de sua vida, flertou com diversos tipos de arte. Escreveu e interpretou teatro, atuou para as câmeras de cinema e achou na literatura um refúgio que não encontrou na nona arte. “Eu tenho uma voz muito própria e não consigo abafá-la, não consigo abafar minha fera criativa. É uma coisa que vai se manifestar em qualquer trabalho meu, desde que eu esteja me sentindo livre”.

Autor de seis romances (‘O Cheiro do Ralo’, ‘O Natimorto’, ‘Jesus Kid’, ‘A Arte de Produzir Efeito Sem Causa’, ‘Miguel e os Demônios’ e ‘Nada me Faltará’), o artista diz que demorou, mas encontrou o que realmente gosta de fazer. “A literatura é o que me dá mais prazer, é onde vou mais fundo, é a forma mais profunda que tenho de pensar as coisas”, relata. Mutarelli mergulhou na produção de livros depois de longos 20 anos de envolvimento com arte.

“Escrever é muito solitário. Eu gosto de ouvir música enquanto desenho; a música é minha religião. Quando escrevo, não consigo”, fala, enquanto tira o casaco e se prepara para voltar ao seu desenho. Um dos espectadores pede ao mediador da conversa que pergunte o que o artista escuta para poder desenhar. Com a caneta parada, ele pensa, gagueja, fica em silêncio de novo e fala, perceptivelmente, a contragosto: “Não vou dizer, tenho muito ciúme do que ouço e não saio falando por aí. Eu escuto bastante coisa minimalista, mas a música do capeta é a coisa que eu mais gosto… Muito, mesmo”, enfatiza. “Têm coisas que eu ouço e me fortalecem, me ajudam a criar e eu não vou dividir com vocês. Ouçam a banda ‘Current 93’. Escuto bastante, é boa e o vocalista é meu amigo no Facebook”, conta com um misto de orgulho e comédia, para diversão do auditório.

Lourenço (2)A carreira como ator de cinema começou nas adaptações de suas próprias histórias, ‘O Cheiro de Ralo’ e ‘O Natimorto’, em que fez pequenas pontas. “Ainda quero fazer muito cinema, para que, no leito de morte, eu diga: ‘eu adorei fazer aquele filme’”, a plateia ri, mas ele fala sério. “Recentemente, fiz o vilão da adaptação do livro ‘Escaravelho do Diabo’ (de Lúcia Machado de Almeida) e foi muito legal, porque o cara é um vilão, vilão, mesmo, tipo Coringa”, conta, animado, quase que tentando convencer o público. “Eu não terminei de ler esse livro quando ainda estava na escola, porque o menino que me emprestou pediu de volta”, solta a frase, quando as risadas da afirmação anterior ainda ecoam.

Nos quadrinhos, Mutarelli já publicou ou participou de mais de 20 livros, entre eles ‘Transubstanciação’, ‘Diomedes’ e ‘Quando Meu Pai se Encontrou com um ET Fazia um Dia Quente’, desenhou e distribuiu um sem-número de fanzines no fim dos anos 80 e anos 90. O artista, porém, diz que desistiu do universo da nona arte, porque nunca se sentiu parte dele.

“De uns anos para cá, só desenho pra mim. Preciso desse tempo, desse deleite. Os meus cadernos são lugares de não pensar, eu busco o non sense. Desenho e escrevo coisas muito rápidas e viro a página. Depois, eu revisito aquilo e acabo pegando ideias dessa coisa experimental. Às vezes, é só diversão mesmo”, conta.

O artista disse que deve publicar mais alguns poucos quadrinhos, por trabalho, não diversão. Suas histórias feitas de coração sairão somente quando ele morrer. “Não é fazendo tipo, mas eu gosto de coisa póstuma. Tenho deixado algumas coisas para dar dinheiro para a viúva”, diz. Novamente, o público ri, mas ele fala sério, sem intenção de fazer piada.

Apesar de não alterar o modo como fala, é possível ver a frustração do artista ao comentar sua carreira nos quadrinhos. Pela temática de suas histórias, diz que foi marginalizado pelo mercado. “Nunca ganhei dinheiro com quadrinhos, só uma merreca para pagar, no máximo, o aluguel. Minha esposa me sustentou. Lucrei alguma coisa com literatura e encomendas, preso na coleira dos outros…”, a última frase fica no ar, como se o artista achasse que não vale a briga.

Muitos espectadores desenhistas pedem dicas e conselhos. Ele é direto: “Sempre quis fazer curso de desenho, mas não tinha dinheiro. Sorte a minha, porque é uma ótima oportunidade para anular sua criatividade. Quer saber de uma coisa? Desenvolva seu trabalho, fuja de referências, faça o que for legal para você, porque dinheiro não vai ganhar. Vá fundo, se descubra, ponha para fora”.

O tom de voz calmo de Mutarelli muda apenas duas vezes ao longo da uma hora e meia de palestra. Na primeira delas, assume um tom sombrio e a tristeza fica evidente no que fala. “Meu sonho era publicar gente nova, mas eu não consigo em lugar nenhum. Já tentei de todo jeito, mas ninguém se importa”, diz e fica em silêncio.

O artista parece perceber a mudança de tom e descontrai: “Minha esposa jogava na loteria e eu dizia que se ela ganhasse, publicaríamos gente nova. Ela parou de jogar porque disse que iríamos ficar chatos com tanto dinheiro. Prefiro ser legal e não publicar ninguém”, explica, arrancando risos da plateia. Nem ele se segura.

LoureçoO Artista

“Queria estar aqui, mesmo, mas bebendo e fumando com vocês. Quando eu tiver meu instituto cultural, vai ser proibido não fumar e não beber”, responde, sorrindo, à pergunta de um espectador que quer se saber onde o artista gostaria de estar naquele momento.

Por anos, Mutarelli enfrentou a Síndrome do Pânico e outros problemas que o deixaram perdido. Encontrou na arte a única forma de colocar tudo para fora. “A cada livro, estou melhor. Meu trabalho cura crise, é terapêutico. Nunca termino pior”, conta.

Lourenço Mutarelli é, acima de tudo, um homem desprendido. Parece ter aprendido sua própria maneira de se libertar. Grande parte dos tabus que incomodam a muita gente não faz cócegas na alma do artista. “Gosto de envelhecer e a melhor coisa desse processo é poder escrever sobre personagens que tenham a minha idade, porque finalmente os entendo”, explica para um público vidrado no que ele fala e que torce para que o bate-papo não termine.

Se o envelhecimento não tem efeito sobre Mutarelli, a juventude e as novas ideias podem causar certa estranheza. “Quando começou esse negócio de computador, vi amigos jogando todo o material fora, deixando de lado técnicas que dedicaram anos para dominar em troca de um Photoshop”, o público ri, de novo, mas ele se explica: “Gente, eu uso, mas demorei para aceitar.”

Para mostrar, definitivamente, que não há guerra entre ele e o mundo virtual, Mutarelli dedica seu próximo livro para o Google, Google Tradutor e Google Mapas. “Eu criei uma história e personagens andando pelas ruas, no Google Street View. Isso é lindo, sabe? Eu nunca vou pisar lá, mas se tornou real para mim”, empolga-se. “A internet só me irrita porque é uma distração, também. Você senta para trabalhar e entra no Facebook, Pornôtube. Eu já consegui me disciplinar e agora acho tudo muito bom, até o Pornôtube”, afirma o artista, que faz comédia sem querer. Quando faz piadas, está sendo sincero, não se esforçando para produzir riso.

Se na primeira vez que alterou o tom de voz durante a palestra ficou triste, na segunda expõe uma ideia com indignação e, talvez, raiva. Rabiscando o painel com força, Mutarelli responde quais são seus maiores medos: “Quando eu era pequeno, era o boletim. Hoje, é fim de mês, contas… O medo de não conseguir. Isso me deixa muito, muito triste. Como é injusto!”, exclama.

Depois de um pouco de silêncio, o mediador faz mais uma ou duas perguntas antes de encerrar, mas o artista está absorto em sua arte.  Quando o fim da palestra é anunciado, Mutarelli olha para o painel e exclama: “Só mais um minuto, faltou uma coisa!”. Rapidamente, ele pega uma caneta vermelha e desenha alguns pequenos traços no painel. Para muitos, um mero capricho. Para ele, um detalhe imprescindível.

Lourenço Mutarelli, um homem que vive de detalhes.

Serviço
O Evento ‘Quartas ao Cubo’ continua até o fim de abril. Nas próximas quartas, os convidados serão os gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá (15), Luis Felipe Garrocho (22) e André Diniz (29).

Local: Itaú Cultural
Endereço: Avenida Paulista, nº 149 – Centro – São Paulo
Horário: Das 20h às 21h30 (ingressos começam a ser distribuídos às 19h30)

Para mais informações, acesso a programação do Itaú Cultural.

Enquanto desenhava, Mutarelli explicava sua obra: “Sempre faço esse desenho em meus cadernos. Da direita para esquerda estão o Diabo, que fala com o Xipe-totec, que fala com o macaco, que fala com minha gatinha Mentira, que fala comigo e eu falo com uma garrafa de whisky.”

Enquanto desenhava, Mutarelli explicava sua obra: “Sempre faço esse desenho em meus cadernos. Da direita para esquerda estão o Diabo, que fala com o Xipe-totec, que fala com o macaco, que fala com minha gatinha Mentira, que fala comigo e eu falo com uma garrafa de whisky.”

O artista deu mais detalhes sobre alguns dos elementos da composição:

Diabo: “Eu gosto muito dele, muito, muito, muito, mesmo. Existe um Mal real e existe esse outro Diabo, que tem muito a ver com a minha potência criativa. Se o triângulo para cima é Deus, para baixo é o Diabo.”

Xipe-totec: “É minha experiência mística. Ele é uma entidade asteca, retratada de diversas maneiras. O Xipe-totec assume o corpo de um escravo ou um macaco, por exemplo, mas o corpo real dele sempre é maior. Então, o verdadeiro nariz dele rasga o nariz do corpo que assumiu e o mesmo acontece com braços, pés, boca… É impressionante!”

Mutarelli: “Eu não tenho tanto cabelo assim, mas desenhei assim para impressionar vocês. Nessa cena, deixei meu coração em casa e estou levando meu cérebro para passear. Ele parece um cocô, mas é meu cérebro. Se fizerem exames em mim, verão que é realmente igual.”

8 perguntas para Lourenço Mutarelli

Mutarelli, como você começou a se interessar por quadrinhos e desenhar?

Meu pai tinha uma coleção muito grande de clássicos dos quadrinhos, então sempre tive contato. Com o tempo, eu senti vontade de me expressar dessa forma e foi acontecendo… Quando comecei a desenhar, impressionei meu pai. Achei isso legal. Tornou-me diferente, no bom sentido.

Com pouco mais de 20 anos, você foi diagnosticado com síndrome do pânico. A sua arte foi uma maneira de lutar contra esses problemas que te atormentavam?

Sim, produzir me ajudou muito, porque me impulsionou a melhorar. Era uma forma de ir me tratando. Querendo ou não, quando eu me expressava, tratava de uma série de questões que eu não conseguia lidar na vida real. Eu encarava como algo terapêutico, também. Foi o jeito que encontrei de me tratar.

E ainda é um processo terapêutico?

Eu tomei medicação por 28 anos e não tenho mais esses problemas. Hoje, vejo como uma forma fundamental para que eu exista, para refletir sobre muita coisa, pensar mais profundamente sobre algumas questões.

O que aconteceria com o Mutarelli se parasse de ler e escrever?

É muito difícil responder. Eu até tentei… Fiquei três anos sem escrever, um ano e pouco sem desenhar, para experimentar o silêncio. Mas eu gosto muito, me dá muito prazer. Eu não sei o que aconteceria. Hoje, acho que seria mais tranquilo que há um tempo. Ainda assim, é uma atividade que faz com que eu me sinta muito confortável.

Quanto seus trabalhos são sobre você?

Meus livros e quadrinhos são autobiografias emocionais. Falam de coisas que vivi e senti, mas não necessariamente nas mesmas situações. No papel, tem muita metáfora do que vivi, são coisas muito sensoriais, mas não existenciais, necessariamente. O que eu fiz de mais autobiográfico está em ‘Mundo Pet’, compilação histórias curtas, que misturam um pouco da minha existência com as ideias que tenho.

Por que você costuma dizer que não foi bem recebido no mundo dos quadrinhos?

Porque eu não fui, mesmo. Não fui, de jeito nenhum. A cena de quadrinhos tinha uma característica muito forte de humor e o que eu fazia não era, necessariamente, humor. Eu era muito fechado também, então não teve uma química boa, como na literatura.

É como um amor não correspondido? Você é bem resolvido com isso?

É… Eu não sou bem resolvido. É uma coisa que eu nunca soube resolver.

Li em algumas entrevistas que você gostou de trabalhar com referências fotográficas no seu desenho. É um recurso que ainda utiliza?

Durante muitos anos, eu não usava referência. A partir do ‘Diomedes’, comecei a usar. Na verdade, depende muito do que estou fazendo, da necessidade que sinto de ter uma referência ou de não ter. Cada trabalho é uma situação particular, é uma experimentação, então mudo o processo que fiz anteriormente para experimentar um novo. O que me motiva é isso: experimentar.

Entrevista também publicada na Revista O Grito!

Todas as fotos foram cedidas pela assessoria de imprensa do Itaú Cultural.

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